quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Por Humberto Nelson Ferrão In " RIBATEJO: do rancho de trabalhadores ao rancho folclórico"

Excerto do Trabalho de Humberto Nelson Ferrão

IV Congresso Português de Sociologia
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Exposição do Mundo Português (1940); nas Festas do Barrete Verde e das
Salinas (1941); nas Festas do Colete Encarnado (V. F. de Xira); nas Festas dos
Tabuleiros (Tomar); nas Feiras de S. Martinho (Golegã) e de Todos-os-Santos
(Cartaxo) e noutras iniciativas que decorreram sem caracter de regularidade, em
articulação com a Junta de Província do Ribatejo.
Curiosamente, dentre estas, em plena Guerra Mundial, constata-se a
realização da Exposição-Parada Agrícolo-Pecuária de Santarém e da Parada
Folclórica e Cortejo do Trabalho (1940), integradas nas Festas Provinciais do
Ribatejo, que continuaram o “efeito de montra regional”, precedendo
tematicamente a Expo-Feira de Pecuária (1946) e um outro grande momento de
reflexão e envolvência dos líderes e pensadores desta zona no II Congresso
Ribatejano (1947), organizado pela Casa do Ribatejo (1943, Lisboa), agora sob
uma nova e legitimada condição administrativa: a Província do Ribatejo.
Sob a batuta da Junta de Província do Ribatejo, toda a década de 40
assistiu ao desenvolvimento de eventos, ainda que pontuais, mas que foram
impondo uma “lógica da da prática”38 de delimitação e afirmação regional que se
estendeu para a década seguinte com a Feira Franca - Exposição Industrial,
Comercial e Agrícola (1950) e que a Feira do Ribatejo, por iniciativa da Câmara
Municipal de Santarém, veio reforçar, legitimar, devido à sua institucionalização
anual e ao seu redimensionamento, a partir de 1963 - com um âmbito nacional -
posicionando-se, assim, como a charneira das Feiras portuguesas a nível
Internacional: a Feira do Ribatejo (1954) e Feira Nacional de Agricultura (a partir
de 1964).
De facto, a Feira do Ribatejo sintetizou todo um conjunto de interesses e
interessados regionais como expressão anual dos valores, capacidade
organizativa e empreendedora do Ribatejo.
Assente inicialmente nos modelos experimentados pelas Exposições,
Feiras e Paradas de 1926, 1936, 1940, 1946 e 1950, a sua Comissão
Organizadora cedo percebeu a força que esta estrutura regional podia
desempenhar aos mais variados níveis, como montra periódica do
desenvolvimento e visibilidade regional.
E para levar a cabo esta empresa, desde a primeira hora, a Feira do
Ribatejo contou com a determinação e a acção do regente agrícola Celestino
Graça que, a partir da sua 2ª edição, passou a ser o seu Secretário e homemforte
só abandonando esta posição com a demissão de toda a Comissão
Executiva, em Outubro de 1974, no seguimento das contraditórias lutas políticas
internas, emergentes da situação criada no pós-25 de Abril desse ano.
Para além do aspecto principalmente económico em que a Feira se
constituía como um local de compra, venda e exposição de produtos da
Agricultura e da Industria nacionais, ela rapidamente passou a ser também um
forte centro regional de actividades de caracter recreativo-cultural oriundas de um
ribatejanismo que tinha aqui lugar para se expressar em todo o seu esplendor.
Fruto do seu contacto com as variadas terras do Ribatejo, devido à sua
profissão, Celestino Graça (com uma equipa mais ou menos dedicada) foi o
grande impulsionador dos aspectos recreativos com que tinha de animar os
tempos da Feira, para além do aspecto exposicional.
Aqui convém não esquecer que C. Graça é equivalente a Feira do Ribatejo
e foi no primeiro ano desta (1954) que ele viu o Rancho Folclórico “Os Campinos”
da Azinhaga (Golegã), servindo-lhe de estímulo para avançar para outros
horizontes da representação a partir das três sub-regiões do Ribatejo, ou seja,
com o poder de que estava investido como alma mater do certame, ele passa a
defender que o Bairro, a Lezíria e a Charneca devem ter os seus próprios
representantes distintos uns dos outros, encetando dentro das suas
possibilidades, quer a fundação directa de ranchos, quer a sua capacidade de
38. Bourdieu, cit. 36, p. 111.
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influenciar os amigos e conhecidos estimulando-os a criarem e a dirigirem
ranchos próprios que, entretanto, foram aparecendo. Mas, ao mesmo tempo, para
além desta sub-divisão regional, ele concretiza outro dos seus pensamentos:
“criar em Santarém um grupo que, mercê das condições especificas (estar no
centro), pudesse demarcá-la toda” (à Províncias do Ribatejo)39.
Esta intenção tem objectivos deliberados e mais vastos que se prendem
com a possibilidade da própria Feira ter garantida a oferta de produtos de
animação cultural que lhe permitissem a atractividade das gentes de dentro e de
fora da região e que ela passasse a ser o “palco das grandes lides folclóricas de
Portugal40”.
Neste sentido, Graça começou por fundar um grupo de pescadores
avieiros (1955), de Benfica do Ribatejo (Almeirim), devido à sua grande ligação
profissional com estes “nómadas do rio” Tejo e por ser originário dum lugar da
zona do Bairro, nos limites da cidade, criou o Rancho Folclórico de Graínho e
Fontaínhas (1956). Imbuído deste espirito e para beneficiar da centralidade da
capital de Província, aposta num grupo de âmbito regional a partir do centro ao
fundar também o Grupo Infantil Scalabitano (1956), a partir da festa de anos da
filha, que por vicissitudes várias, passados alguns meses, muda o nome para
Grupo Infantil de Danças Regionais, ao passo que desdobra ainda um segundo
agrupamento, este constituído por jovens estudantes adolescentes, denominado
por Grupo Académico de Danças Ribatejanas, cuja 1ª exibição se dá em 195741
Para além destes, ele entusiasmou novos aparecimentos de grupos ou a
facilidade de um concelho, de uma ajuda, como nos casos de Almeirim, Vale de
Santarém, Azambuja, Cartaxo, Torres Novas, Riachos, Salvaterra de Magos,
Aveiras de Cima, até 1960...
Todos estes e outros ranchos passaram pela Feira do Ribatejo e foram
criados com esse objectivo: servir de cartaz de animação do maior certame
regional, congregando quase um rancho por concelho nos primeiros anos, que ali
se deveriam apresentar.
Devido a esta acção continuada e norteada para a valorização do folclore
regional nos anos subsequentes, aliada à capacidade de tomar decisões nesta
área e por ser um dos intervenientes no meio, houve quem considerasse o
panorama folclórico do Ribatejo (quer dizer ranchos folclóricos) num período
antes e depois de Celestino Graça42.
De facto, há aqui uma intenção regional deliberada de surgimento e
(re)invenção de tradições locais, directamente destinadas ao espectáculo que,
por sua vez, cria novas estruturas de relacionamento social nas comunidades
locais. Estas estruturas - ranchos folclóricos - dão o seu contributo
desinteressado inicialmente, mas cedo percebem que podem usufruir do sistema
vigente de comercialização de espectáculos, aliado à promoção/visibilidade do
seu local de origem, ligado ao turismo vigente e assente num discurso de defesa
da identidade ribatejana.
39 Barreiros, A. Souto, “Celestino Graça e o Povo”, in In Memoriam de Celestino Graça (1914-1975),
Santarém, 1978 (à 7ª página do artigo). Estas ideias também foram confirmadas, em 23/1/99, por Bertino
Coelho Martins, músico que acompanhou Celestino Graça no levantamento de melodias da região, nos
anos 1950/60.
40 Id,, Ibid., (à 11ª página do artigo).
41 Moreira, João, “Os 25 anos do Festival Internacional de Folclore”, in Festival Internacional de Folclore -
Bodas de Prata - Retrospectiva, edição Feira Nacional de Agricultura/Feira do Ribatejo, Santarém, 1983.
Informações várias também recolhidas em entrevista a este “braço direito” de C. Graça, em 24/1/99. Ver
também Barbosa, Luísa Teixeira, Feira Nacional de Agricultura/ Feira do Ribatejo - Retrospectiva -
1954/1988, Edição da Feira Nacional de Agricultura/ Feira do Ribatejo, Santarém, 1988, p.19; e Barreiros,
cit. 39 (páginas 6 a 9 do artigo).
42 Barreiros, cit. 39.
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Esta movimentação folclórica leva assim ao primeiro grande surto de
ranchos folclórico no Ribatejo que levou a uma tal capacidade de “fazer e de
fazer ver” (Bourdieu) que se alicerçou um complexo cultural e ideológico à volta
duma outra trilogia baseada no Homem (Campino), no animal (touro) e na
geografia (a Borda d’Água, também apelidada por Lezíria) e que outros já tinham
começado por sobre-valorizar através de “um pacto tácito” entre outros três
valores - homem, cavalo e toiro - como símbolo de todas as virtudes ribatejanas
(25/6/38)43.
Ora, se a estas juntarmos a trilogia das sub-regiões da Província - Lezíria,
Bairro e Charneca - parece que ao Ribatejo está acometido uma “unidade
trilógica” que determina a forma como a região é percebida pelo exterior e como
se dá a conhecer, situação que os ranchos folclóricos serviram como perfeitos
meios transmissores.
Emerge aqui um processo de folclorização que veicula e exterioriza uma
ideia da região e do seu património e praticas etnográficas que se projecta nos
destinatários internos e externos, por forma a garantir a representação da sua
imagem-tipo (região e sub-regiões). Passada esta fase de difusão das ideias
regionalistas estamos concordantes em que o processo de folclorização assenta
num “conjunto de rituais remetendo para a imagem idealizada e truncada que o
grupo {(a região)} presume ser a mais congruente com a que sobre si terá
construído o espectador-turista-consumidor”44.
Entretanto, noutra fase bem posterior, este tipo de processo de
folclorização adquire outra roupagem, porque são os próprios agentes do
processo (os ranchos folclóricos) que começam a pôr em causa, pelo menos,
aquele tipo de “imagem idealizada” anteriormente. Abre-se um outro tipo de
processo de folclorização que passa por uma desconstrução/reconstrução das
práticas folclóricas que abrem caminho para uma outra “imagem idealizada” da
região que pretendem substituir e impor à anterior.
Assim, os ranchos folclóricos, como novas estruturas relacionais,
desenvolveram outras práticas que possibilitam uma nova visão regional, pelo
que se têm esforçado e obrigado junto do espectador-consumidor a: por um lado,
desmontar as ideias pré-concebidas na fase anterior e, por outro, mostrar que o
vigente processo de folclorização adquiriu outras nuances, fruto de um maior
investimento no conhecimento deste objecto de estudo, mas continua a manter
um conjunto de rituais dirigidos para a formação de uma imagem ideal e
truncada que os “outros” irão passar a ter da mesma região.
O processo de folclorização surge agora com uma outra gradação
qualitativa, podemos dizer, renovada, embora não perca o essencial da
elaboração relacional indispensável à construção/reconstrução de um processo
identitário “de uma espécie que se considera, é considerada e está em vias de
extinção”45.
DOS RANCHOS DE TRABALHDORES RURAIS ...
Até aqui temos descrito o processo de enquadramento em que os ranchos
folclóricos fizeram o seu aparecimento na região do Ribatejo. Agora analisaremos
mais em pormenor a forma de criação e fundação dos primeiros grupos como
estruturas mais ou menos organizadas, a partir das ideias de valorização
folclórica que aqui foram captadas, apesar da sua profundidade e extensão não
serem muito convincentes senão a partir da década de 50, altura em que se
43 São, António do Monte, “Ribatejo, terra de gente forte e boa”, in Boletim da Junta de Província do
Ribatejo, nº 1 (1937/40), 1940, p. 61.
44 Pinto, cit. 34, p. 219.
45 Id., Ibid.

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